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Uma Crônica da Pandemia



Estou preso. Esse é um fato inconteste. Não é uma prisão como a dos condenados. Uma cela, superlotada ou não, fechada a cadeado e com homens armados do lado de fora. É uma prisão desigual. A minha própria casa. A possibilidade de sair livremente é falsa. Em lugar dos homens armados, da vigilância ostensiva, com ordens de atirar para matar, há uma vigilância sorrateira, invisível, de seres impossíveis de ver a olho nu. E com ordens de matar pra valer e de forma dolorosamente cruel. Desumana, claro. Nem se pode exigir desses guardas-carrascos uma humanidade, porque eles não a têm. Somos apenas um veículo para que se reproduzam e perpetuem a própria espécie, sem importar os danos causados ao ambiente em que vivem. Não se preocupe. Não vou traçar paralelos com outra espécie que faz o mesmo. Não preciso.

A conclusão a que chego, é que estou contaminado pelo vírus. Ele não me afeta o corpo como me diz o resultado do teste feito anteontem, mas em algo tão caro quanto. Ou até mais: minha condição gregária. A vontade de conviver, confraternizar e andar livremente ou, ao menos, dentro de um espaço muito maior e do qual não consigo sair a pé em um único dia. Mas ele faz concessões e não se preocupa em justificá-las, tampouco com as críticas que faço. Me deixa conviver plenamente com aqueles que, para minha felicidade, estão presos comigo. 

Me deixa conviver virtualmente, desde que haja eletricidade e sinal de internet, com quem está longe. Mas é uma convivência sem tato e olfato. Sem paladar também. Eu não costumava mesmo provar meus convivas, de modo que disso, do gosto deles, não sinto falta mesmo. Sentir o perfume dos amigos, coisa que, nos tempos idos minha condição de macho refugava, hoje mostra como era importante. E tem o abraço… ah!, como faz falta. O sorriso sincero pela alegria do encontro, a mão estendida que te puxa pra perto e termina em um abraço caloroso, provando, sem deixar dúvidas, que a pessoa gosta da sua companhia. Isso faz uma falta tamanha.O leitor sabe do que falo. Espero. Se não entende, me compadeço dele. Quando tudo passar, experimente um abraço amigo. Depois passe aqui e deixe seu comentário. Vou gostar de saber.

Percebem uma crueldade especial? Sim? Não? Lhes digo de qualquer modo: a prisão sem prazo. Qualquer condenado pela Justiça sabe o dia em que recuperará sua liberdade. Eu não. É uma agonia só. Uma puta ansiedade pela queda “da curva”, a torcida pelo sucesso dos infectologistas e laboratórios, a descoberta da vacina.

Pois é. Sobrevivo de pequenas alegrias, como perceber que não encontro em meus amigos e amados ninguém vitimado pela Covid. Pela notícia fresca de que em tal país o número de casos parou de crescer. Pelo augúrio de um lugar em que o número caiu drasticamente e eles já começam a sair às ruas. Da alegria empática pelos que viram a morte de perto e saem do hospital acenando, felizes, da cadeira de rodas.

E me agarro, com todas as forças, na crença sobre o valor de cientistas, médicos, enfermeiros e todos os profissionais que encontram-se na resistência. A eles, minha eterna admiração pela luta incansável, pela resiliência e pela bravura.

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