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Quem é Você?

Contando Histórias

Uma advertência antes de você começar a ler. Diferentemente de meus outros textos (sejam crônicas, contos, relatos de viagens ou poesias) esse tem alguns palavrões. Se você é sensível, não leia, ok?

QUEM É VOCÊ?





Em completa paz e sentindo a vida com uma esperança quase insana, me servi de uma dose de Chivas e liguei a TV. Zapeei por alguns instantes e parei em um canal que transmitia uma bela cena. Nela, um homem lia tranquilamente um pequeno livro, com a cintura encostada no parapeito da janela, de costas para a câmera. Era noite, mas a rua parecia movimentada e, ao longe, se viam algumas luzes nos edifícios da rua. O apartamento estava na penumbra, de modo que a luz que vinha da janela criava um quadro muito bonito, talvez por conta da pouca mobília que havia.

Um belo trabalho do diretor de fotografia”, pensei.

O homem fechou o livro lentamente, como quem reflete sobre aquilo que acabou de ler, e se virou. Olhava diretamente para a câmera, com uma expressão calma e confiante. E caminhou em sua direção.

Quem é você?” perguntou.

Me interessei na hora. Fisgado pela estratégia do filme, me aproximei e, tateando um lugar na poltrona mais próxima da televisão, me sentei.

Silêncio.

Quem é você?” repetiu, elevando pouca coisa o tom da voz, o olhar fixo na câmera. Nesse instante, senti um leve desconforto. Parecia falar comigo. Sensacional!! ‟Filmaço”, pensei. Diretor cabeça. Olhei em volta procurando o controle da NET para buscar informações sobre o filme. Precisava saber que diretor genial era aquele. Pensei no Lars von Triers, não sei por quê.

Não se faça de desentendido. É você mesmo. Quem é você?

Sentei-me e beberiquei um pouco do meu uísque, já completamente fisgado pelo filme. O homem então se vira e caminha pela sala em direção a uma porta, alcança um corredor e entra em um outro cômodo, onde há uma escrivaninha, sobre a qual se veem algumas folhas. A câmera o acompanha e o ambiente muda para uma iluminação tosca, ficando um pouco mais claro que o anterior. Ele escreve algo, joga a caneta displicentemente sobre a superfície, pega a folha e caminha de volta para a porta. Há um corte e ele está, novamente, caminhando em direção à câmera.

Segurando a folha com as duas mãos, a ergueu até que toda a câmera exibisse apenas o papel, onde se lia, em letras garrafais ‟A televisão está com o som desligado?”.

Só podia ser brincadeira. Sou um cara racional, nem acredito em Deus (nem em Alá, Buda ou qualquer outra forma de existência sobrenatural, antes que alguém me tome por anticristão). Ele retornou à mesa, pegou a caneta e escreveu:

Entendi. É sua primeira experiência. Por favor, responda”.

Tá de sacanagem”, pensei. Sem querer, soltei um risinho nervoso e, não posso garantir, acho que ele fez um meneio com a cabeça como quem diz ‟Humm... finalmente” Muito constrangido e satisfeito por estar completamente só – se alguém me visse seria motivo de gozação pelo resto da vida – arrisquei, baixinho, quase inaudível:

É comigo?
Claro, porra”, um certo tom de irritação no ar.
Caralho... e o cara ainda é pedante”, pensei.
Pode repetir?” pedi, absurdamente embasbacado.
Quem é você? E o que está fazendo?” disse o cara na TV, retornando então à cordialidade.
Ridículo demais. Eu estava atônito. Um sujeito na televisão não apenas falava comigo, como era atrevido a ponto de me perguntar, em minha própria casa, quem eu era e o que estava fazendo. Resolvi entrar no jogo.

Essa é minha casa. Tô descansando, não vê?
Não é hora de descansar. Há muito trabalho pro fazer e, por favor, não tome meu tempo. Quero saber quem é, realmente você

Comecei a rir. ‟Já sei. Saquei tudo”. Algum desses programas de televisão devia ter conseguido, através de algum amigo ou parente, instalar câmeras em minha casa e, agora, me pregavam uma peça.

Peguei leve. Não mandei ninguém tomar no cú. Em lugar disso, fui educado e bem-humorado, na medida do possível ‟Podem parar, seus palhaços!

Tirei os olhos da tela e comecei a vasculhar o local onde estava a tevê. Era óbvio que uma microcâmera havia sido plantada. Rodopiei pela sala, olhando pra cima, pra baixo, alucinado e sustentando um sorriso abobalhado no rosto. Fucei cada canto, virei cada porta-retratos, vaso, tudo que achava pela frente. Mas não encontrei nada. Desliguei a televisão e esperei. O telefone iria tocar, com toda certeza, pensei. E realmente tocou. Já atendi rindo.

Peguei vocês, hein?
...c'como? Desculpe, acho que foi engano”, uma voz de mulher que não reconheci. Desligou. O telefone tocou de novo. Atendi

Diz aí; que palhaçada é essa?
É da casa do Gui?”
‟Sim, sou eu mesmo", respondi, agora já um pouco desconcertado com o tom da conversa.
‟Gui, sou eu, Maria Fernanda Ruiz, da Expertise... Liguei em má hora?
Fernanda? Puxa... desculpe

Maria Fernanda Ruiz era uma mulher séria. E que atualmente estava no escritório de São Paulo. Não fazia sentido algum que se envolvesse em uma brincadeira. Em sérias dúvidas, muito confuso, não entreguei o jogo. Menti. Disse que estava sendo vítima de alguns trotes e que me perdoasse a forma como atendi a ligação. Resolvemos um assunto de trabalho, a despachei o mais rápido possível e esperei. Nenhuma outra ligação aquela noite.

Não conseguia dormir e me senti agradecido por ser sexta-feira e não precisar ir ao escritório na manhã seguinte. A garrafa de Chivas secou e não tive coragem nem de encostar no controle remoto.

Passava pouco de uma da tarde quando acordei. Café, cigarros e... Tevê, claro. Mesmo canal. Precisava desencanar daquilo. Nenhuma brincadeira de televisão teria resistido. A audiência não aguentaria horas e horas de um silêncio total ou de minha roncadeira de bêbado.

Você está horrível. E ainda não me respondeu. Quem é você?
Que tipo de pergunta é essa?
Boa. Estamos começando a nos entender. Quem é você? Pense. Se quiser, tome um banho antes. Você está horrível

Se ia enfrentar aquilo, que fosse logo.

Me chamo Gui Baudolino, sou consultor financeiro...
Consultor financeiro! Ual! O que você faz?
Trocando em miúdos, analiso as melhores opções para minha empresa aplicar aquilo que arrecada nos negócios
Sim, mas que tipo de conselhos você dá?
Onde investir. Sempre procurando coisas rentáveis, que resultem em retorno financeiro

Ele, que parecia interessado, voltou à expressão cética do início. Continuei falando de mim e terminei a lista de minhas qualidades com  ‟...sou cumpridor das leis e um cidadão exemplar. Tá bom?
Cidadão exemplar. Parece muito bom. O que é que você faz que te qualifica como cidadão exemplar?
Como assim?

Ele pareceu subitamente irritado. E ficou agressivo.

Você não me parece burro. Quer que eu repita a pergunta?
Ué... Respeito as leis, pago meus impostos todos em dia, voto com consciência, me informo sobre política e, principalmente, sobre a economia brasileira e mundial. Trato todos muito bem, paro na faixa de pedestres, só avanço o sinal se for depois das dez da noite, não fecho o cruzamento mesmo se o sinal estiver aberto.
‟...”
Cumprimento porteiro, faxineiro, recepcionista, sei o nome de todos os que trabalham na empresa...

Ele soltou um grunhido, típico de quem não se impressionou nada e fez um leve movimento com a cabeça, como a esperar que eu dissesse algo de valor.

Porra, quê que 'ce quer mais?

Jura que tem mais?” (o tom era de puro sarcasmo)

Soltei outra lista de coisas boas sobre mim. Trabalho voluntário, doações etc.

Silêncio. Ele olhava para mim com uma expressão de cansaço.

E então, satisfeito? Sabe quem sou eu agora?

Sim. Eu sei quem é você agora. Você é que não sabe quem você é

Pensa comigo: um cara na televisão, que dialoga contigo, intimida. Impõe respeito. Né não? Pergunto o porquê de ele achar que eu não sei quem eu sou.

Sei quem é você. Mas você não. Tudo o que você sabe diz respeito a aspectos externos, transcendentes. Você é Gui? Não, claro que não! Gui é apenas um nome que lhe deram. Seu estado civil e seu trabalho são passageiros e podem mudar a qualquer momento. Cumpridor de leis? Tá bom. Aceito como definição. Realmente diz algo sobre você, mas é uma grande merda cumprir as leis que são feitas por essa gente. Agora, o pior de tudo é você se declarar um cidadão exemplar, quando tem uma percepção equivocada de cidadania. Distorcida. Retrógrada. Pobre. Ridícula,

Ele parecia cada vez mais inflamado.

... uma cidadania pela metade, ou melhor, que apenas perpetua aquilo que você pensa ajudar. Você deveria gritar, incomodar, exigir mudanças, vandalizar. É consultor financeiro, mas nunca aconselhou investimentos de seu empregador em algo que realmente melhorasse a vida dessas pessoas E TEM MAIS...

Quando ele começou a gritar eu é que me irritei. Não é só porque alguém faz algo excepcional, como dialogar através da televisão que eu tenho que lhe dar razão. Lembrei da história do sujeito que, caminhando pelas baias de um hipódromo, ouve de um cavalo o palpite para apostar nele, pois seria uma barbada. O sujeito aposta, o cavalo chega em último e, quando ele vai tirar satisfações, o tal cavalo diz a ele que já faz muito de falar, não sendo razoável que se exija dele que ganhe todas.

VAI SE FUDER” Gritei. E desliguei a TV em meio aos seus berros.

Por via das dúvidas, cancelei a assinatura daquele canal.


Comentários

  1. UM DIÁLOGO MUITO INTERESSANTE... EU NÃO AGUENTARIA TANTO... MUITO LEGAL!

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  2. Exceto os palavrões (rsrsrsrs), excelente conto. Prende a atenção o tempo todo. Ninguém vai escapar de ler até o fim. Parabéns. Beijos.

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  3. Meu caro, Ney.
    Você começou magistralmente o seu conto. Confesso que fiquei encantado com o início, a forma como abordou o ambiente em sua sala e na sala da imagem mostrada pela TV. Gostei da sua descrição, da maneira como conduziu o leitor e, confirmo, fui tragado: fiquei intrigado e queria saber como a coisa terminaria... Enfim, entrei no jogo!
    Penso que, talvez, se o conto fosse um pouco mais curto (principalmente o corte de diálogos longos – isso é particular e me incomoda muito; kkkk), ele manteria a sua força inicial. Acho que no meio tem uma pequena ‘barriga’ – vai ao telefone, atende, dorme, acorda... Não sei se fosse um pouquinho mais enxuto e, ao invés do uso da fala intermitente, o uso e o abuso do cartaz (como fez antes...) manteria a força, o ‘tapa’ no leitor – é a questão da imagem que o leitor monta na cabeça... Mas isso é apenas um detalhe de chatos como eu, que se preocupam com... detalhes! Rsrs Mas penso que estão justamente nos detalhes a força de todo texto...
    Agora, a maneira como você conduziu sua história para fazer uma crítica aos valores que nos impõem, que tentam nos fazer engolir diariamente, como se fossem os donos da verdade (há, no momento, uma grande discussão sobre o papel da mídia que vem “dando um padrão a forma de pensar do brasileiro”), tudo isso torna seu texto bastante atual.
    Por fim, quero dizer que adorei os palavrões. Mandar de vez em quando os outros se fuder é ótimo!!!! Kkkkkk Isso quando merecem. A maneira como finalizou o conto também achei legal, vibrante. Detalhe: pensei que você iria fechar as cortinas com um discurso padrão, mas mandou todo mundo se ferrar! Foi ótimo! Na sua casa, na sua cachola, quem manda é você, então, não queiram me moldar. Muito legal. Você, escritor, está indo muito bem na minha modesta opinião!
    Grato por ter me permitido ler seu conto.
    Grande abraço!
    Mattedi

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