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O Encontro

Escrevi esse conto há muitos anos. Já nem lembro. Para que o leitor tenha uma rápida ideia, tive que fazer algumas edições, como para mudar uma menção ao carro que o personagem comprara, então um Vectra... A menção a um mini system eu mantive, porque entra em uma lembrança do passado do narrador. E ao remexer meus arquivos, tentando fazer algo nesse período de isolamento por conta da pandemia, encontrei esse texto. Reli e resolvi que queria dividir com vocês. Espero que gostem.




O ENCONTRO


Marcamos encontro numa cafeteria elegante de um shopping center. É início de agosto e o inverno ainda nem terminou, mas já faz calor e o céu tem um azul incomum, de uma beleza ímpar, dessas que nos fazem pensar que os dias estão melhores e que a felicidade está bem ao nosso lado. Olho pela janela e tenho a impressão de que não sopra nem uma brisa. As árvores não balançam e por entre os carros, enquanto atravessa para o outro lado, um homem enxuga o suor com um lenço azul e olha na direção de um cão sem dono que dorme à sombra da castanheira. Não sei se inveja o cãozinho pela sombra ou se tem medo. Eu também gasto um tempo olhando para o bichinho. Completamente esparramado, como se implorasse por um vento fresco, ele me faz sentir uma ponta de compaixão. Mais abaixo na rua, um grupo de meninas caminha trocando algumas palavras e sorrisos. Mas todas têm o andar lento de quem não deseja lutar contra o calor.

Sem sair da frente do ar-condicionado, pois não quero chegar suado, coloco uma camiseta branca que logo troco por uma blusa azul clara, que fica melhor sobre o jeans escuro e o sapato preto, apesar das mangas compridas, impróprias para o calorão que faz. No entanto, não há dúvidas: me sinto melhor assim e, afinal, no carro e no shopping também tem ar-condicionado.

Meus olhos estão fixos no espelho, mas o que enxergo não é minha imagem. Há 7 anos eu não a vejo, não ao vivo. Há 7 anos não acaricio seus cabelos cacheados nem lhe dou um cheiro ou beijo. Ansiedade pura, as sobrancelhas arqueadas, procuro atônito algo que nem eu mesmo sei o que é. Atravesso o corredor que hoje parece não ter fim, alcanço a cozinha e instintivamente me dirijo para a porta dos fundos, abro-a e caminho em direção ao elevador social. Abro a porta e entro rapidamente, mas tenho de voltar. Esqueci a chave do carro, um seminovo que comprei de última hora porque no caso de ela querer ir a algum lugar, não queria que fosse no jipe da firma que eu vinha usando ultimamente.

Há cinco dias recebi a notícia…

***

Mal saí do elevador, ouvi o telefone tocar. Como sempre, saí correndo para atender, na esperança de que fosse minha filha. Na pressa, deixei a chave cair, abaixei rapidamente para pegá-la, abri a porta dos fundos e corri até o telefone que fica ao lado da geladeira. A secretária eletrônica já começava a atender e ela iniciava o recado [“Pai, sou eu... vou ao Brasil. Chego aí no sábado. Mamãe e Mario vão junto...”]

Tirei o fone do gancho. “Oi filha, tô aqui. ‘Cumé’ que ‘cê tá?”.

Me disse que o padrasto e a mãe tinham uns negócios pra resolver em São Paulo e que concordaram em levá-la junto para que viesse me encontrar. Dariam um jeito de vir até a cidade onde moro e foi aí que combinamos o encontro. Desliguei o telefone e saí pulando pela casa feito criança. Era o retrato da alegria.


Saio apressado da garagem e o porteiro, que limpava algo na calçada, me acena um e solta um “boa tarde” simpático. Mas o cantar dos pneus, com certeza, não o deixa ouvir minha resposta. Olho pelo espelho retrovisor e noto que ele balança a cabeça com um sorriso nos lábios. Não sei se me acha tolo ou acha graça da minha urgência, mas dois segundos depois já o esqueci. Ando um pouco acima da velocidade pros meus padrões, mas com cuidado, no entanto, para não cometer nenhuma infração. Se tem algo que não quero é ter de parar e me explicar a um guarda de trânsito. Chego rapidamente ao estacionamento do shopping, aperto o botão vermelho e desperto uma voz mecânica que me diz para retirar o cartão, desejando na sequência que eu faça boas compras. Ao mesmo tempo um rapaz todo de branco com um logotipo de operadora de celular estampado na camiseta, tenta me entregar um folheto qualquer que eu recuso. Será que não percebe que quero entrar logo e que minha mão está ocupada retirando o cartão de estacionamento? Sinto um leve arrependimento por esse gesto de mal humor.


Estaciono mal... saio do carro, olho e não gosto do que vejo. Parar mal em vaga é o fim. Volto alguns passos e desisto, pois ela pode já ter chegado e não quero que espere. Caminho cerca de 10 metros na direção da entrada, mas não dá pra deixar o carro assim! Saco! Que mania essa que eu tenho! Volto ao local em que estacionei (se é que posso chamar aquilo de estacionar) e coloco o carro no lugar correto. E fico contente com meus toques e manias ao perceber que havia deixado o presente no banco do carona. É só uma lembrancinha, pois não quero recebê-la de mãos vazias. No mínimo, vai ajudar a quebrar algum gelo. Afinal, sete anos é muito tempo e insegurança é pouco pra dizer como estou me sentindo.

Sete anos é tempo demais…

***

No primeiro ano após a separação eu tinha tudo planejado para ir visitá-la no leste europeu. Mas cancelaram minhas férias e de nada adiantou eu ter implorado ao meu chefe. Boa pessoa, mas dizia o tempo inteiro que escapava ao poder dele, que tinha sido uma emergência, que eu deveria embarcar no dia seguinte para cuidar do problema com o projeto de um cliente, que isso, que aquilo e blá, blá, blá... eu já não o ouvia e não creio que ele tenha deixado de notar meus olhos vermelhos e minha expressão de ódio. Provavelmente foi o início do fim de minha carreira na empresa, muito embora eu tenha ido e solucionado o problema. Tudo bem, eu fui, mas não resisti a comentar com o cliente que estava ali quando gostaria de estar em férias, viajando ao encontro de minha filha que não via há mais de ano...

Agora, seis anos depois, lembrando disso dou um sorriso enquanto penso que o infeliz deve ter ligado pro meu chefe e contado dos meus desabafos. Subo as escadas rolantes que me tiram do estacionamento subterrâneo e me levam ao primeiro piso. A cafeteria fica no terceiro e, enquanto procuro a escada que sobe (por que será que estão sempre mudando a “mão” das escadas rolantes nos shoppings?), olho o relógio e vejo que ainda falta um bom tempo para a hora combinada. Será que minha filha é pontual? Nunca conversamos sobre isso... Nos telefonemas contamos o que temos feito, ela me fala das coisas do colégio, do frio, das brincadeiras na neve, do irmãozinho mais novo e coisas assim. Certa feita me contou de um menino... Nossa! Meu coração quase parou de susto e ciúmes! E ela sempre perguntando quando é que eu iria lá para vê-la...Nos anos seguintes, com o desemprego e a abertura de minha própria firma de projetos, faltou dinheiro.

Finalmente, ano passado, os negócios já bem melhores, dinheiro entrando bem e com certo nome na praça, eu fui. Mas um problema com meu visto causou uma das maiores frustrações que já experimentei.

***

Ela provavelmente esteve há menos de 50 metros de mim, ali no aeroporto, mas os guardas, se dirigindo a mim em um inglês quase incompreensível e falando entre eles numa língua completamente estranha, simplesmente nem me deixaram entrar no país e nem a deixaram vir ao meu encontro. Passei o número do celular dela, mostrei documentos provando que era o pai, mas foram inflexíveis. Implorei para ao menos lhe dar um abraço e entregar o presente que havia comprado. Alguns agentes me olhavam friamente, enquanto outros pareciam simpatizar com meu problema. Num gesto de boa vontade, um deles, que para minha surpresa se dirigiu a mim falando um inglês quase perfeito, me chamou no canto quando ficamos a sós e me pediu que lhe entregasse o presente e o telefone de minha filha, que daria um jeito de fazer a entrega. E realmente o fez. Stojakovic. Não esqueço seu gesto e sempre reservo algumas palavras para ele em minhas preces. Mas era demais para ele conseguir um encontro, e quase doze horas depois, voltei no mesmo avião que me havia me levado.


Tudo isso passou e agora faltavam poucos minutos para voltar a ver minha princesinha, meu pacotinho de felicidade, como costumava chamá-la. Vejo a cafeteria entre uma livraria grande e uma loja de grife feminina. Já que cheguei adiantado, passo antes em uma banca de revistas, compro um jornal e retomo o caminho do Café. Ao chegar, me sento em uma das mesas vagas que vejo mais ou menos no centro e resolvo beber algo. Preciso fazer alguma coisa para disfarçar a ansiedade. Tento ler o jornal, mas não me concentro nem na primeira manchete. Viro as páginas sem muito interesse até que a notícia de um crime no meu bairro me chama a atenção. No entanto, leio a notícia 3 vezes para só então compreender que meu desconhecido vizinho fora espancado, mas passava bem, embora não se lembrasse de nada e nem de quem o agredira.

Levanto da mesa, vou até o balcão, faço meu pedido e volto. Minutos depois, uma moça jovem, de cabelos louros cuidadosamente presos debaixo de uma redinha cor de café me traz o espresso e me olha com um sorriso cordial. “Açúcar ou Adoçante?”. “Amargo mesmo, obrigado”. Por sobre o avental amarelo e vinho que me informa ser aquele o melhor café da cidade, noto que ela faz uma cara de discreta repugnância. Meu nervosismo, no entanto, não me permite nem mesmo saborear o café. Por um momento, não consigo segurar nem a imaginação.

E aí ela chega... de tão linda fico paralisado. Não é possível que seja a minha menina, meu bebê. Mas vem correndo em minha direção, sorriso aberto, lágrimas nos olhos, um vestido florido e sem mangas, com detalhes brancos na altura do colo, sandália baixa, tal qual na foto que me mandou pelo correio há alguns anos. Me dá um abraço apertado que me tira o fôlego. A primeira coisa que me diz é que sentiu tanto minha falta... jura que nunca mais vai me deixar e que não volta com a mãe e o padrasto.

Um leve tremor nas mãos e o café quente me queima os dedos. Com violência e brutalidade a queimadura força minha volta à realidade. Não há ninguém em meus braços.

Sem cuidado algum limpo as mãos com o primeiro guardanapo que encontro ao mesmo tempo que, num misto de esperança e desamparo a procuro, correndo os olhos ao redor da mesa, perto do balcão, pelos corredores... Nada, claro. Mas que ilusão boba. Ela ainda não chegou, mas vem aí. Vem sim. Calma.

Há quantos anos. Quantos anos desde aquele dia...

***

Abri a porta e só então me dei conta da solidão em que me encontrava. Menos de uma hora atrás, lá no saguão do aeroporto, cheio de gente, de encontros, indiferenças e despedidas, tinha acabado de ver minha única filha partir, o avião decolando resoluto em direção ao céu escuro, à distância infinita das estrelas. Até este momento eu ainda não percebera a minha exata desgraça. Acendi a luz num gesto automático. A sala estava vazia e o tom bege das paredes, assustadoramente neutro, aumentava a sensação de que ninguém se importava com o que eu sentia. Ficara apenas um sofá branco, uma samambaia e o mini-system. Não havia no que tropeçar, ainda que fechasse os olhos. No chão, próximo à parede, empilhado sobre outros, peguei ao acaso um dos meus livros. Poesias de Murilo Mendes. Abri e li a primeira. Foi então que chorei. E tanto, que não sei dizer - não lembro - a que horas parei ou mesmo se algum instante eu parei de chorar.

Quando acordei já amanhecia. De onde estava podia ver um céu negro com traços aqui e ali de um rosa ou laranja. Parecia que o sol lutava para se mostrar, mas sem muito sucesso. Vez por outra um fiapo de luz entrava pela janela, mas não durava nada. Estava frio, nublado e lembro de, na hora, imaginar se era isso mesmo ou se era assim que eu enxergava o mundo lá fora. Igual ao que estava aqui dentro do meu peito, na sala, no corredor, na cozinha.

Preparei um café e pensei “É… hoje é só pra mim”. Bobagem. Essa sempre fora a rotina, já que elas não bebiam café. Mas ao contrário do que indicava o ato tantas vezes repetido enquanto elas dormiam, dessa vez tudo estava diferente. Não haveria a voz fina e balbuciante de minha filha reclamando seu café da manhã e nem seu abraço apertado seguido de um beijo estalado e do “Bom dia pa-pai” que me aquecia o coração todas as manhãs e me enchia de vida e coragem. Veio um frio na boca do estômago, uma dor no peito, uma sensação de sei lá o quê que não ia embora e nem me matava de vez. Faltava até motivo para preparar o café, escovar os dentes, tomar banho.

Depois de um gole de café, com esforço, tentei me chamar à responsabilidade. Afinal, ao contrário do que pudesse parecer eu não fora derrotado, não é? Hein? Ao menos não moralmente! Mas não queria pensar nisso agora. Sempre encarei a vida de frente e achava que logo isso iria se tornar algo com o que conviver. Resolvi me alimentar bem e forcei um pouco. Me enfiei num terno, que só usava quando tinha algum cliente especial (mas naquele dia, não), e fui trabalhar.

Meu primeiro cliente do dia, por pura coincidência, era dono de um escritório de advocacia. Que diabo! Esforcei-me ao máximo e consegui, a muito custo, não tocar no assunto da audiência. Afinal, ele não tinha nada a ver com a história e nem com a forma como eu via o Judiciário, advogados, juízes e promotores. Oh Raça.

Combinamos o projeto, “Sim, sim, pode ficar tranquilo Doutor H…, 10 dias e lhe entrego para começarmos a execução.”, e ele saiu, aparentemente satisfeito.



- Mais alguma coisa?... O senhor quer mais um café, uma água...?

- Não, não... obrigado.

A moça do café me resgatara de minhas lembranças. Trocara o sorriso simpático por um olhar esquisito. Misto de apreensão e simpatia. Acho que minha cara não estava das melhores. Antes de me deixar ainda me olhou e disse “saiu pão de queijo fresquinho...”. Fez um meneio com a cabeça como quem pergunta se eu não queria, mas logo compreendeu que era inútil. Parecendo me esquecer, foi atender à mesa da frente, onde três mulheres e um homem, todos ali pelos 40 a 50 anos, conversavam animadamente. Subitamente um frio no estômago. O homem é justamente... não, não! Merda! Esse tipo de coincidência não me agrada. Definitivamente. Pode ser mal agouro.

***

Seis meses antes do dia em que deixara minha filha no aeroporto, eu tive um dia de cão. Quando entrei na sala do meu advogado, uma hora antes do horário da audiência contido na intimação que tinha em mãos, tinha esperanças de que ele iria me dar boas notícias. Se já não estivesse sentado, teria caído. Uma sensação de tontura e falta de ar tomou conta de mim quando ele me disse que, apesar de tudo o que tinha havido, eram grandes as chances de eu ficar sem minha filha, talvez ter de pagar uma pensão e que minha mulher poderia mantê-la longe de mim, indo morar lá nos quintos dos infernos, nos cafundós do mundo. Não acreditei nele. Pensei: “Esse cara tá me mostrando um quadro horroroso que é pra quando ganhar o caso, poder dizer que se esforçou bastante, coisa e tal”. Imaginei que quando o juiz me ouvisse, teria de me dar razão. Que ilusão. Elegante e educado, mas distante, o juiz não teve o menor interesse em ouvir minha versão. Disse que meu advogado já dissera tudo o que lhe interessava na defesa e que o que ele por acaso ali não tivesse colocado, estava “prê” qualquer coisa. Uma promotora estava lendo uns papéis e assim continuou ao longo de toda a audiência, somente dizendo umas poucas palavras quando o juiz a ela se dirigia.

A expressão de completa ausência de interesse deles no meu sofrimento particular me desanimou e logo depois me revoltou. Comecei a falar mesmo sem permissão: então minha mulher se envolve com outro homem, um estrangeiro que eu nem sei quem é direito, resolve ir morar em outro País, tenho de vender metade do meu patrimônio (incluindo os móveis da casa) e, pior de tudo, ficar sem minha filha, somente tendo reais condições de vê-la, no máximo, uma vez por ano, e mesmo assim se as coisas corressem bem? Essa é a lei? O olhar frio de reprovação que ele lançou na direção do meu advogado enquanto a promotora apenas observava o que se passava sem mover um músculo da face, me disse tudo. Calei-me e tão logo pude, deixei o Fórum com vontade de explodi-lo.


Subitamente, dois delicados toques no meu ombro direito. Me viro cheio de felicidade. “Minha filha chegou!”, penso.

- Eeiii!!! Que bom te ver! Sempre tomando um café, né? Meu projeto ‘tá andando? Nossa, que calorão! Ainda ontem mesmo aquela chuva! Assim fico resfriada e já viu, né? Ó, tô indo pra New York depois de amanhã e... Ai meu Deus, te disse? Agora tenho mais dois gatos. Angorás. Lindos! A Fê, lembra dela?, me encomendou uns discos que só se encontram numa determinada loja, numa rua escondida no Brooklyn perto de um parque lá... essas coisas da Fê, cê sabe como ela é.

Não... eu não tinha, naquela hora, a menor ideia de quem era a Fê. Mas mal consegui abrir a boca e minha cliente já ia longe, num andar requebrado que chamava quase tanto a atenção quanto seu quadril avantajado. Achei graça. Era uma boa cliente. Falava muito, trazia sempre novos pedidos de projetos, pagava bem por eles, em dia, e pouco reclamava. Além de tudo, sempre de bom humor. E lá ia ela.

Nesse instante uma menininha de uns 5 anos parou em frente à minha mesa e perguntou: “Você viu minha boneca?”. Tinha os cabelos castanhos cacheados, os olhos grandes e redondos e a mesma expressão séria que minha filha assumia quando algum de seus brinquedos saía das suas vistas…

***

Devia ser umas 8 horas da manhã e resolvemos ir passear pelo parque que fica próximo ao dois quartos alugado em que morávamos, coisa de dois minutos a pé. Muito verde, muita sombra, passeios largos e lisos, pouca gente a caminhar naquela hora, aquele era um lugar ideal para ela aprender a andar de bicicleta. Coloquei no bolso as ferramentas para desaparafusar as rodinhas e descemos. Como sempre, ela carregava no colo a boneca Suzy de cabelos negros e longos que ganhara da avó, que vivia lhe comprando presentes, mesmo quando não havia nada de especial. A pequena bicicleta rosa, outro presente de mamãe pra ela, tinha uma cesta em frente ao guidão, na qual sempre viajava a Suzy. Na semana anterior eu já havia tirado uma das rodinhas e ela ia bem. Tinha facilidade para aprender essas coisas.

Eu estava confiante que ela logo andaria sem rodinha alguma, mas não estava preparado para o que viria a acontecer naquele dia. Tirei a segunda rodinha e com a voz mais confiante que dispunha, disse a ela que tudo ia ficar bem. Segurando a parte de trás da bicicleta, andei uns trinta metros com ela e fiquei confiante, pois fizera pouco esforço para equilibrar os movimentos. Resolvi soltar as mãos e, para minha surpresa, ela saiu andando. Mas não parou e só andava para a frente e cada vez mais rápido. E na frente havia uma curva que contornava um lago, cheio de cágados e carpas. Corri o mais que pude e gritei para que ela parasse. Depois disso só me lembro de tê-la no colo e do sangue que corria solto pela perna. Só mais tarde, depois de voltar com ela da clínica onde colocara o gesso na perninha e dera alguns pontos no joelho, é que me lembrei de ir até o parque pegar a bicicleta. Um dos vigias do parque a havia guardado para nós e lhe fiquei muito grato. Ao chegar em casa, corri todo feliz para lhe contar que havia conseguido recuperar a bicicleta, que ainda carregava nas mãos. Com uma expressão séria, as sobrancelhas franzidas, sem sequer olhar para a bicicleta, disparou: “você viu minha boneca?”. E naquela mesma tarde, lá fui eu pescar boneca suzy no lago do parque.


Ainda sorria, num misto de alívio e nostalgia com o episódio, quando me virei e a vi. Linda. Minha menina. Nada de vestido azul com rendas. Ao contrário, uma calça jeans justa com uma blusa dourada por cima, no ombro uma bolsa preta combinando com as sandálias de salto! Sandálias de salto! Parece mais alta que eu... Tem o olhar agudo e a expressão de quem procura algo. Certamente olha por mim entre as mesinhas e o povo bem arrumado da cafeteria. Não sei se estou controlando a emoção ou se a emoção é que me domina, mas fico a olhá-la, sem me mexer ou fazer sinal. O cabelo preso em um coque de bailarina talvez esconda os caracóis ou talvez o cabelo já esteja liso. A cor é ainda o mesmo castanho claro, com alguns fios levemente dourados. Ela sempre me diz que não gosta de pintá-los, ao contrário da mãe, a cada ano diferente, acompanhando a moda dos balcãs. Penso que puxou a mim, nesse conservadorismo.

Retomo um pouco do controle, me levanto e ando com pressa na direção dela. Tropeço em uma cadeira e o barulho faz com que as pessoas me olhem. Subitamente ela pára. Está uns cinco metros à minha frente, próxima ao balcão, porém de costas. Só então noto o espelho grande sobre as máquinas de café. Ela sorri o mais lindo dos sorrisos ao mesmo tempo que me olha direto nos olhos através da imagem refletida. Que coisa linda...

E duas lágrimas descem. Uma pela minha face, outra pela dela. Minha filha ainda é “Minha Filha”. Sete anos depois, volto a compreender o porquê de a vida valer a pena.

FIM

Comentários

  1. Não tinha idéia desse seu lado escritor, mas saiba que fiquei angustiada como se fosse eu a encontrar meu filho. Uma leitura que prendeu minha atenção do começo ao fim.

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