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Contando Histórias: Até que Alguém Reconheça





Olhei novamente pela janela. Ela continuava lá, com seu ritual sem sentido. Passava pouco das onze e me levantei da cadeira pela terceira vez, deixando de lado minha estação de trabalho para dedicar atenção ao seu comportamento alucinado. Era impossível me concentrar porque, de alguma forma, as suas palavras não me saíam da cabeça e eu não conseguia atinar o porquê. Era uma mulher baixa, na época talvez nos seus quarenta e cinco, quarenta e seis anos, cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo, muito magra e vestida com uma curiosa mistura de elegância e desleixo. Pela forma como se dirigira a mim quando o acaso fez com que me escolhesse naquela manhã, tem boa instrução e, não sei bem explicar como, me deixou com a certeza de que tem alguma cultura. Talvez até uma boa cultura. Apesar do frio que fazia em Vitória quando a vi pela primeira vez, se cobria apenas com um vestido sem mangas e, mesmo a cumprir sem parar o mesmo ritual toda a manhã, não parecia nem um pouco incomodada com o sapato de salto alto que tinha nos pés.

E lá, novamente, ia a mulher. Após abandonar mais um assustado pedestre, caminha na direção contrária dizendo algo a outro que vai na mesma direção. 

O fato é que andava de uma esquina à outra, sem parar. Naquela manhã, quando eu passava por ali, começou a falar algo em que não prestei atenção. De certa forma, parecia falar consigo mesma, de modo que demorei a perceber que falava era comigo. E assim caminhou a meu lado os cerca de oitenta metros entre as ruas Princesa Isabel e Cleto Nunes, me contando algo que na hora não fui capaz de saber a razão de me dizer aquilo, mas que me era de certa forma familiar. Lembro de sentir pena, convencido de que perdera o juízo.

Minha assistente me tirou desses pensamentos, dizendo que não sabia exatamente o que fazer com determinado caso que lhe passara. Mas estava obcecado. Dirigi a ela um sorriso ameno e disse qualquer coisa só para me livrar da situação, voltando o olhar para a rua. Precisava descer, e desci. Ao sair do prédio recebi no rosto uma brisa fria que contrastava com o sol claro e a forte luminosidade da rua. Ali sempre havia buzinas, ruído de motores e cheiro de óleo diesel, mas nada disso ficou retido em minha memória. Só o que lembro é que caminhei na direção da mulher e vi que ela caminhava ao lado de uma jovem negra, um pouco acima do peso, que parecia se divertir com a “louca” a lhe falar aos ouvidos.

Ando em direção às duas e ainda hoje posso ouvir as palavras finais “E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando nos ares certos do tempo, até não se sabe quando...”

Mas no instante em que a jovem pôs o pé direito no asfalto, a mulher parou de falar e se deixou abandonar à solidão, o olhar perdido por alguns segundos que, tenho certeza, apenas eu percebi. É isso! Ela falava o tempo todo com alguém mas estava só. Lembro-me de pensar que não lhe fazia a menor diferença o interlocutor... seu desejo é falar e falar e falar. Como estava enganado!

Um homem branco, mas com a pele curtida ao sol, na casa dos sessenta anos, cabelos ainda grisalhos, dentro de um terno surrado, mas com a classe de quem já viu melhores dias, andava em sua direção. Ela ainda não o percebera e, não me pergunte o por quê, pressenti que era a minha chance. Atravessei a rua como jamais aconselharia minha filha a fazer e coloquei meus passos justo à frente do homem de terno surrado, apressando o passo para chegar antes a ela. Me aproximei dela e me pus diante de seu olhar, um misto de ternura e distância, se é que isso é possível. Ela se colocou ao meu lado e começou:

“O Amor... É difícil para os indecisos. É assustador para os medrosos. Avassalador para os apaixonados! Mas, os vencedores no amor são os fortes. Os que sabem o que querem e querem o que têm! Sonhar um sonho a dois, e nunca desistir da busca de ser feliz, é para poucos!"

Para minha surpresa, não seguiu comigo e tão logo pronunciou a última palavra, um homem de uniforme que passava por nós foi por ela capturado e, assombrado com aquela mulher a lhe dizer coisas, atravessou a rua a passos rápidos. 

Ela não se fez de rogada e apegou-se a outro homem, dessa vez um senhor pela casa dos oitenta anos que vinha na mesma direção em que eu e ela estávamos há pouco. Como estavam perto de mim, pude ouvir o que dizia:

“ Tenho fases, como a lua, Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha.

Dessa vez, contudo, algo extraordinário aconteceu. O velho parou e sorriu logo às primeiras palavras e assim que ela fez uma pausa para respirar, ele tomou da palavra e replicou:

“Fases que vão e vêm, no secreto calendário, que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. E roda a melancolia seu interminável fuso! Não me encontro com ninguém (tenho fases como a lua...)”

Assisti, então, um momento de pura magia. Aqueles dois estranhos pareciam um só e todos as pessoas do mundo ao mesmo tempo. Felizes e melancólicos, eufóricos e contidos, timidamente se expunham a todos e, numa só voz, repetiam com a calma de quem sabe estar a lapidar uma valiosa pedra:

“No dia de alguém ser meu, não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia, o outro desapareceu...”

Era isso. Minhas memórias se espalharam pelos céus como um bando de pássaros assutados com o som de um tiro na floresta. Ela me recitara uma poesia de Cecília Meireles!! Uma daquelas que eu, ainda criança, repetira tantas e tantas vezes na frente do espelho para as provas de português na escola, exigências do Professor Mauro. Tudo o que ela procurava era alguém que conhecesse a poesia e a compreendesse. Ao final, olhou agradecida nos olhos do velho senhor que a acompanhara nas últimas estrofes, respirou fundo, sorriu e atravessou a rua com o passo resoluto de quem encontrou o que procurava, sem se despedir de ninguém.

No dia seguinte ela não estava mais lá. E nem na semana seguinte. Meses depois a vejo na Chapot Presvot. O mesmo ritual. Dou um jeito de entrar na frente da senhora de tailler verde que seria a sua ouvinte involuntária e tomo seu lugar. Ela se aproximou de mim, sem qualquer sinal de me reconhecer e começou, sem cerimônia alguma:

"Venham ver os meninos, Venham ver os divinos. Todos trabalham e têm fome. Mas não têm teto nem nome. Não têm escola nem vida,

Têm escravidão não nascida. Não têm terremotos nem guerra, Mas todas as tristezas da Terra."

Reconheço na hora! “Isso é da Francisca Lacerda, a poetisa da terra! Eu conheço!” E esse poema, em especial, sempre me chamou a atenção. Nem a espero iniciar a estrofe seguinte e tomo a palavra:

"Têm cabeça-corpo de criança, Mas de adulto a desesperança. Fazem tênis, carvão, rede, riqueza, Mas ninguém vê sua tristeza."

E como da vez em que a vi recitar Cecília Meireles com aquele senhor de idade, repetimos juntos o delicioso final da poesia de Francisca Lacerda:

"Venham ver esses meninos,

Venham ver esses divinos."

Como da outra vez, ela respirou fundo num gesto de profunda satisfação e, rosto iluminado, olhos brilhando, atravessou a rua, dobrou na Joaquim Lírio e desapareceu em meio às pessoas que, àquela hora, iam e vinham com ou sem sentido ou razão.

Não a vi mais. Nem nos dias e nem nos meses que se seguiram.

Anos mais tarde, viajando a trabalho, a vi. Da janela do meu táxi, sobre o Viaduto do Chá, a mesma figura magra, baixa e elegante – que pouco se importava com o frio – caminhava em meio aos apressados paulistanos, certamente desfilando poesias. De quem seriam agora? Fui invadido por uma nostalgia gostosa e por pouco não mandei parar o táxi. Mas já tinha feito a minha parte ali na Praia do Canto, como aquele velho senhor o havia feito no Centro de Vitória e, provavelmente, tantos outros ao longo dos anos. O que a leva a recitar as poesias até que alguém as reconheça e replique? Não sei. Mas não importa. Me basta saber que ela ainda o faz. Me basta saber que alguém o faz.



Comentários

  1. Só o olhar apurado de uma pessoa como você Ney, pode transformar as cenas do cotidiano de uma cidade em textos tão bons assim.
    Parabéns
    Fabricio Loureiro

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  2. Essa crônica é linda, mesmo! Já a li diversas vezes. E com a honra de ter meu poema falado pela personagem.
    Beijos, Ney.

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